O livro Entre o Segredo e a Solidão: Aborto na Adolescência
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, de Wendell Ferrari, é uma contribuição
valiosa para a discussão sobre sexualidade, gênero e aborto na adolescência. O autor
apresenta os resultados de uma pesquisa acerca do aborto provocado entre adolescentes,
em que são analisados relatos de dez meninas entre 12 e 17 anos que vivem em uma favela
do Rio de Janeiro, Brasil. A obra traz reflexões importantes quanto à justiça
reprodutiva, pois as histórias contadas pelas próprias jovens escancaram as assimetrias
interseccionais de gênero, raça, classe, idade e território. Desse ângulo de análise,
o
tema é pouco conhecido, sobretudo em virtude da escassez de estudos que alcançam um
olhar tão próximo dessa realidade.
A Pesquisa Nacional de Aborto de 2021 trouxe dados reveladores sobre a
vida reprodutiva das jovens, mostrando que 52% das entrevistadas tinham 19 anos ou
menos
quando fizeram o primeiro aborto
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.
Proporções mais altas foram detectadas entre aquelas com menor escolaridade, negras.
indígenas e residentes em regiões mais pobres. A leitura de Wendell Ferrari nos permite
espreitar a realidade por detrás desses números e vislumbrar a experiência dessas
jovens.
O livro está estruturado em uma apresentação, quatro capítulos sobre os resultados
e
considerações finais. Na Apresentação, temos um panorama dos dados nacionais e
internacionais sobre aborto e são discutidas as dificuldades de obtenção de informações
confiáveis sobre o aborto provocado em contextos de ilegalidade. Apesar disso, estudos
nacionais mostram a expressiva magnitude do processo, a correlação com a morbidade
e a
mortalidade materna e a maior ocorrência de desfechos negativos entre mulheres negras,
menos escolarizadas e mais jovens
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A relevância do estudo de Ferrari é demonstrada pela própria observação de que o aborto
provocado é pouco tratado na ampla literatura sobre gravidez adolescente, assim como
questões específicas dos adolescentes são pouco esclarecidas nos estudos sobre o aborto
no Brasil. Não é de somenos, experenciar uma gravidez, decidir interrompê-la e realizar
um aborto em situação de clandestinidade e vulnerabilidade em um momento da vida de
aprendizado da sexualidade.
No Capítulo 1, Ferrari faz uma análise do tema do aborto no Brasil, dos anos de 1970
até
a década mais recente, colocando em análise os diferentes espaços e atores participantes
do debate. Autoridades governamentais, organizações partidárias, legisladores,
operadores do direito, setores médicos, pesquisadores, autoridades religiosas, mídia
e
movimentos sociais, especialmente feministas e movimentos de saúde são alguns dos
atores
envolvidos nas contendas quanto ao tema. Observa o autor que no plano da produção
de
conhecimentos e desenvolvimento de políticas de assistência às situações de aborto
veem-se alguns avanços, contudo obstáculos importantes persistem e podem ser
exemplificados pelas polêmicas sobre o direito de interromper a gestação no contexto
da
epidemia de Zika vírus. Além disso, o horizonte de retrocessos está sempre à
espreita.
Ferrari observa que os debates sobre reprodução e adolescência tendem a se centrar
na
gravidez como fato dado, não considerando a questão da gestação indesejada, os processos
de decisão sobre mantê-la ou não, as estratégias para viabilizar a decisão de
interromper, as dificuldades em virtude da menoridade civil, as relações desiguais
de
gênero, a falta de autonomia financeira, a falta de informações e conhecimentos sobre
o
procedimento abortivo, entre outras coisas.
No Capítulo 2, o caminho metodológico é detalhado. É muito interessante o relato sobre
a
construção do campo, as estratégias de aproximação com as adolescentes e o
estabelecimento do vínculo de confiança, condição sine qua non para que lhe contassem
experiências de iniciação sexual, gravidez e aborto. Psicólogo de formação, trabalhando
no ambulatório de uma ONG atuante na favela, Ferrari inicialmente se propôs a separar
o
psicólogo do pesquisador, mas teve a sensibilidade de se render à dinâmica relacional
que as próprias adolescentes impuseram, em que a separação rígida - e artificial -
entre
os dois papéis não parecia ser relevante. O método e técnicas escolhidos teve como
preocupação central permitir que as histórias de aborto fluíssem a partir da perspectiva
das jovens entrevistadas, e o modo de conduzi-los foi magistral. Também nesse aspecto,
a
obra de Ferrari é altamente recomendada a pesquisadora(e)s do aborto e, de modo geral,
dos temas que envolvem sexualidade, reprodução e gênero.
As histórias contadas pelas adolescentes são apresentadas e discutidas nos Capítulos
3 e
4. A opção do autor de apresentar partes abrangentes de seu acervo de entrevistas
no
Capítulo 3 foi muito oportuna. Os leitores são expostos não apenas às análises, mas
às
falas das adolescentes, surtindo um efeito de maior proximidade com elas, conforme
pretendido por Ferrari. Ao lê-las, temos um contato mais vívido com suas experiências
e
somos convidadas a participar ativamente da discussão do material. Os relatos são
muito
tocantes, ninguém sai incólume. Passam por vários temas como o processo de iniciação
sexual, masturbação, dinâmicas das relações com parceiros afetivo-sexuais, usos de
contraceptivos, experiência de engravidamento, decisão pelo aborto, itinerários para
realizá-lo. Sentimentos múltiplos, ambíguos e conflitantes estão envolvidos nesses
itinerários, tais quais culpa e alívio, solidão e solidariedade, estigmatização e
afirmação da própria autonomia.
No Capítulo 4, Ferrari discute como, a partir da gravidez indesejada, as adolescentes
buscam estratégias para acessar o procedimento do aborto, com os poucos recursos que
dispõem, mesmo correndo diversos riscos. O abandono pelos parceiros, antes ou depois
do
aborto, é um componente traumático da experiência. Muitas vezes são parceiros com
idade
significativamente maior, pertencentes a outra classe social ou casados. Com eles,
as
jovens mantêm vínculos afetivo-sexuais assimétricos, com autonomia limitada para decidir
quando e como ter - ou não - relações, negociar o uso da camisinha e, em face de uma
gestação, levá-la adiante ou interrompê-la.
Outro componente da experiência das adolescentes é o sentimento de culpa que se acentua
em contextos sociais e familiares em que o tema do aborto é silenciado ou associado
ao
pecado pela visão religiosa. O estigma social reforça o segredo e a solidão do aborto
na
adolescência, apontando a extrema fragilidade e sofrimento das jovens em suas
experiências individuais e trajetórias abortivas. São relatos de dor, desamparo e
solidão, antes e depois do aborto. O aborto ilegal é realizado mesmo com todos os
riscos
envolvidos, seja da clínica da favela, clínicas de outros bairros ou com o uso de
medicamento sem origem conhecida comprado na própria favela. Nesse último caso, o
autor
sublinha novamente o contexto de opressão de gênero ao discutir relatos das
adolescentes, uma vez que elas não podem comprar diretamente o medicamento para abortar
na favela, pois nesse caso a compra é restrita aos homens, ou seja, uma forma de
controle da sexualidade feminina.
As meninas sozinhas ou apoiadas por amigas devem arcar com os cuidados de saúde
necessários no resguardo, por exemplo repouso, medicamentos para dor e sangramento.
As
redes de amizade e a Internet são os meios prioritários pelos quais elas acessam a
informação para cuidar da própria saúde sexual e reprodutiva. O medo de serem julgadas,
maltratadas, denunciadas ou presas afasta as mulheres dos serviços de saúde para
cuidados pré e pós abortamento, sobretudo se forem mulheres negras e periféricas
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Nesse emaranhado de vivências, é possível perceber também resiliência e resistência;
o
aborto pode ser de certa forma libertário para as adolescentes. Em geral, o sentimento
é
de alívio com a interrupção da gestação, seja para perseguirem seus projetos de vida,
seja para se livrar de um vínculo marcado por opressões e violências. Nenhuma
adolescente relatou arrependimento. Conforme Ferrari sugere, nas Considerações Finais,
o
direito ao aborto é central para o processo de autonomia das mulheres.
Para jovens negras e periféricas, o aprendizado da sexualidade se dá em contextos
de
iniquidades e violências de gênero, raça e classe. O cenário desnudado pela pesquisa
de
Ferrari é de injustiça estrutural, com suas expressões nas vivências afetivas, sexuais
e
reprodutivas das adolescentes. O livro é leitura necessária e indispensável para
pesquisadores, ativistas, profissionais de saúde e todas as pessoas que têm interesse
em
desvendar o contexto social caracterizado pela falta de acesso à saúde, desigualdade
de
gênero, racismo estrutural, clandestinidade e ilegalidade do aborto que atinge com
maior
impacto as adolescentes negras moradoras das periferias urbanas.